sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Fêmina

Quando nasci,
um anjo bendito
(envolto num manto azul)
anunciou:
serás como eu,
destinada a ser costela.

Mas me fiz extremamente:
reneguei-me feminina,
enxerguei-me feminista,
sem saber que, nesta sina,
posso, menos extremista,
ser as duas, simplesmente.

Do passado renascida
tendo  força delicada,
e na causa em mim erguida,
na bandeira carregada,
em mim mesma gesto vida
em meu mundo sou jornada.

Meu futuro descortina
no que cumpro destinada:
ser moderna feminina
mesmo forte, ser cuidada.

Ser Simone se souber
Ser Amélia se quiser
Ser Clarice se puder
Ser Alice se couber

Hoje sei que tenho escolha
no direito que meu é.
E se sou de mim a dona,
eu decido:
sou mulher.




domingo, 16 de outubro de 2011

Infância de Meninos

Naquela antiga cidade, três pequenos jogavam bola. Na brincadeira deles, havia algo além da ingenuidade dos meninos do interior, era a beleza do início de uma irmandade. Banho, escola, missa, meninas, e eles sempre juntos, rindo-se plenos.
Hoje, são homens na cidade. Andam sérios, cumprindo-se honestos. Mas jamais serão homens da cidade: sua Terra se faz Nova nos momentos de descuido, quando revivem em memória sua infância. Os três hoje se sustentam ainda pela inspiração daqueles tempos, mesmo que não saibam. Se não fosse a pureza daquela felicidade, o mais velho não seria o mais menino dos três: virou artista. Os outros dois ainda tentaram outros caminhos, mas a vida os conduziu à profissão mais bonita para quem ainda tem esperança: são professores.
E não há espetáculo mais belo do que ver o reencontro deles. Os cumprimentos não são os apertos de mão civilizados que se impõem aos homens. Não. Eles trocam beijos, abraços, carinhos e palavras de amor. E também, numa atitude que incrivelmente não é contraditória, riem um do outro, em galhofas e enxovalhos, lembrando inconfessáveis momentos que viveram juntos.  Apelidados, revelam detalhes das intimidades de cada um e, ainda hoje, cobram uma peça de roupa que ou outro pegou emprestado sem pedir e admite que não mais devolverá.  Os que apreciam o incêndio deles não se chocam. Não. Eles se amam como crianças ainda, mas se respeitam como homens.
A beleza do passado se renova no presente, fazendo dos três meninos fortes para suportarem as dores da caminhada, mas também ainda doces, para seguirem sonhando. Do futuro deles três, apenas uma certeza: jamais se separarão. Compadres, irmãos, amigos. Trarão junto suas esposas, filhos e netos, para os quais contarão, com a mesma alegria de sempre, histórias de sua infância. 
Há quem diga que não se fazem mais meninos como antigamente, mas, acredite, ainda há quem os inspire.
 

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Sincretismo

Meu querer, sem querer,
era quase carnaval:
em face de farra.

E você - ao meu ver -
era missa de domingo:
de família e fraque.

Mas vivemos a certeza
a surpresa da beleza
do destino que nos resta.

Nosso amor é assim
é lavagem do Bonfim:
é da fé que se faz festa.

Em completude.

 

Fases

Em sonho,
trago.
(Criança)

Em vida,
sopro.
(Agora)

Enfim,
recordo.

(...)

De acordo,
não mais acordo:
não me nego ao cordis:
concordo.
Conforme.

sábado, 8 de outubro de 2011

Heideggeriana

Não é nos milésimos de segundos que existimos: é nas lembranças dos instantes. Cada momento singular nosso é vivido tão rapidamente, que não há tempo para sentir o tempo. Uma melodia só se constrói única porque guardamos n’alma cada nota que escutamos e rememoramos todas as anteriores ao ouvirmos a seguinte, tecendo a música na lembrança. É assim que nos fazemos: somos seres da memória. E quando ela se torna recordação, passamos um grande tempo revivendo outros tão maiores, mas que, não paradoxalmente, podem ser revividos eternamente em piscares de olhos, quando o que recordamos é tão intenso que chegamos a reviver anos em apenas uma sensação. Rever um lugar, sentir um antigo cheiro, tocar uma textura, provar um gosto ou ouvir uma voz... Cada uma dessas sensações também dura menos do que milésimos de segundo, mas tem a potência de toda uma vida. Somos o tempo; e cada tempo, que se acha dono de si, sempre só se faz e fez por nós. 
Chega, tempo, caminha ao meu lado... cansei de lutar contra quem a mim é igual. Nem te domino, nem me devoras. Decifremo-nos.